sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A GENTE SE ACOSTUMA

A GENTE SE ACOSTUMA



Marina Colassanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e não ver vista que não sejam as janelas ao redor.


E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma
e não abrir de todo as cortinas.


E porque não abre as cortinas, logo se acostuma
a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma,
se esquece do sol, se esquece do ar, esquece da amplidão.




A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo.

A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.




A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos.


E aceitando os números, aceita
não acreditar nas negociações de paz.


E não aceitando as negociações de paz,
aceitar ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração.



A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: “hoje não posso ir”. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.


A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.


A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e necessita.
E a lutar para ganhar com que pagar. E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar.


E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho,
para ganhar mais dinheiro,
para ter com que pagar nas filas em que se cobra.



A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes.
A abrir as revistas e ler artigos.
A ligar a televisão e assistir comerciais.

A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.


A gente se acostuma à poluição,
às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam à luz natural.

Às bactérias de água potável.
À contaminação da água do mar.
À morte lenta dos rios.


Se acostuma a não ouvir passarinhos,
a não ter galo de madrugada,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta por perto.


A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá.



Se o cinema está cheio,
a gente senta na primeira fila
e torce um pouco o pescoço.


Se a praia está contaminada,
a gente só molha os pés e sua o resto do corpo.
Se o trabalho está duro,
a gente se consola pensando no fim de semana.

E se no fim de semana não há muito que fazer,
a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito sono atrasado.



A gente se acostuma a não falar na aspereza para preservar a pele.
Se acostuma para evitar sangramentos,
para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.



desc autoria

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